26/03/2021

Esperança, enfrentamento e espanto: sentimentos de um jornalista em ano de pandemia

"O café sem pauta é um momento de se reesperançar", disse Aldo Quiroga. Em entrevista à OBORÉ, o jornalista, professor e integrante da coordenação do Projeto Repórter do Futuro diz que a prática profissional exige espanto; o contrário, é naturalizar situações antinaturais.

Nesta conversa, Quiroga fala sobre os desafios experimentados na fase de isolamento social, os aprendizados que obteve em frente às telas e suas estratégias para sobreviver neste período de pandemia.

O Café sem Pauta é mais um encontro que não podemos ter fisicamente. O que você destacaria de mais significativo nessa possibilidade de reuniões virtuais?

Para mim, pessoalmente, é uma dupla satisfação participar do Café sem Pauta. Primeiro pela oportunidade de reencontrar pessoas, ainda que remotamente. Estamos obrigados a ficar isolados e até antes disso tínhamos poucos espaços de encontro. Então, a chance de criar esse lugar de encontro improvável, através do meio remoto, é muito bom. Confesso que fico esperando esse momento, por uma questão afetiva mesmo, da oportunidade de encontrar com pessoas das quais eu gosto muito, também a expectativa de conhecer pessoas novas e interessantes e de estabelecer diálogos sobre os mais improváveis assuntos.

Isso começou com o nome de Café com Pauta, uma brincadeira que cruzaria o café da manhã com aquele ponto zero do jornalismo, que é a pauta, já que surge de boa parte de amigos que são jornalistas. Com o passar do tempo o nome mudou para Café sem Pauta justamente porque os temas eram aleatórios, não havia e não há nenhum tipo de agendamento. Então, a possibilidade de dialogar sobre temas muito distintos para mim é uma coisa muito prazerosa.

Acho que [a atividade] tem pelo menos dois aspectos de resistência nesse tempo: o primeiro é justamente o diálogo, que perdemos de algum tempo para cá no Brasil. A capacidade de ouvir o outro, de expor ideias e opiniões sem irascividade, sem ouvidos fechados e a possibilidade de escutar outras opiniões divergentes, outras visões de mundo.

O segundo aspecto, que me parece de uma resistência tremenda, é que esse diálogo não é só feito de pontos de vista diferentes, mas de gerações diferentes. Então, a interação entre jovens e não tão jovens é uma das coisas mais relevantes e importantes nesse café sem pauta. A gente vive num sistema que defende o contrário, que defende que precisamos estar sempre uns contra os outros, sejam brancos e pretos, homens e mulheres, velhos e jovens, porque assim é mais fácil dominar, é mais fácil arrancar o que esse sistema precisa arrancar de nós. Então, estar presente a um ambiente de livre acesso à palavra, frequentado por essas distintas identidades é muito rico. Me parece que nesse aspecto geracional há a capacidade de semear essa experiência antiga nas almas novas e esse ímpeto, esse impulso e inconformidade jovem, nas almas mais antigas. Essa sinergia é geradora de bons frutos.

Como professor universitário, você já vive essa experiência de troca entre gerações. Falando especificamente no campo do jornalismo, o quanto isso é importante?

Acho que para a prática profissional do jornalismo essa troca é fundamental e não acontece mais nas redações. Primeiro porque foram ceifados os profissionais mais experientes, eles foram trocados por "duas de vinte", por profissionais recém-formados, que estão recebendo muito menos. Então a precarização da nossa profissão também passa por extirpar essa troca entre o jovem e o velho.

Quando falamos de jornalismo, isso tem consequências inclusive para a democracia. Não é possível exigir de um profissional de início de carreira que ele consiga fazer perguntas e relacionar coisas com contexto histórico, com a memória que lhe foi negada a respeito da matéria que está cobrindo [...]. Historicamente, você tem numa redação a sinergia entre a experiência e a juventude: tem o repórter jovem, com ímpeto e que vai à rua, e o editor mais experiente, mais velho, que vai dar o norte para a coisa. Claro que estou explicando aqui de uma forma muito rudimentar.

Inclusive o papel do editor mais experiente também foi precarizado. E com isso não estou dizendo que o jovem não saiba fazer, não possa fazer. Mas perdemos quando essa sinergia não acontece numa redação, a cobertura jornalística perde, ela fica à mercê das possibilidades que o pouco tempo de experiência permite. E quando a gente tem fora da redação um ambiente como esse do Café sem Pauta, que há interação e de uma forma completamente descompromissada ou de promoção rentável ou monetizável, você produz essa qualidade e sinergia. Eu não tenho dúvidas de que cada um desses participantes acaba utilizando essa experiência que absorve no sábado de manhã na sua atividade profissional, em algum momento.

Às vezes percebo que estudantes ficam tímidos de estar num mesmo ambiente que profissionais mais experientes...

Isso é lamentável porque é artificial. Se olharmos os povos originários, uma tribo indígena, por exemplo, e a relação que existe entre os jovens e os velhos, é uma relação de confiança. A inibição dessa juventude é produto dessa criação artificial de que somos competidores, que somos uns contra os outros, e nessa conta, em geral, a "autoridade", dos anos de experiência, fala mais alto. Mas essa autoridade não será, no sistema que estamos, exercida com acolhimento, humildade e solidariedade. Ela será exercida com bullying, com humilhação…

É importante que [os estudantes] tenham em mente que podem aproveitar esse espaço e que não se deixem levar por essa armadilha do sistema neoliberal de que estamos competindo. Se você disser alguma coisa que eu, que tenho cabelo branco, não goste, vou te humilhar porque preciso marcar o meu território, a minha posição, porque não quero que você me substitua?

Essa é uma produção desse sistema, é artificial e não natural do ser humano. Desde que nos juntamos, como sociedade humana, alimentamos os mais velhos e as crianças para depois alimentar os mais saudáveis e fortes. Depois que mercantilizamos as coisas é que passamos a transformar e inverter isso, e os fracos ficam por último. Acho que essa lei da competitividade entre gerações tem que ser evitado sempre.

A outra face dessa moeda é o jovem que ignora o velho porque não ele "terá nada para dar". Não é só o velho e o experiente quem causa bullying. A gente também vive, como um dos efeitos desse sistema, o individualismo que provoca um sujeito cheio de certezas, cheio de si mesmo, achando que por dominar uma ou duas técnicas ali sabem mais e não têm mais o que ouvir.

Os estudantes que se aproximam do Café sem Pauta, em geral são pessoas ávidas para ouvir e que não caíram nessa armadilha. Mas ainda são poucos. Acho que o mérito deles é não ter se permitido cair nessa armadilha de que estamos uns contra os outros e que não há o que aprender de gente mais velha…

Existe também na faculdade certo discurso que desestimula os estudantes de jornalismo a seguirem carreira, como você vê isso?

Assim como comentei sobre a precarização nas redações, que extirpou a relação entre as gerações, também temos exatamente a mesma raiz, o mesmo problema, mas com outra cara, no ambiente acadêmico.

Aqueles professores que não são exclusivamente pesquisadores, que além da vida acadêmica têm uma prática profissional em redação, se não souberem conduzir bem essa vida dupla, em geral despejam nos alunos os ressentimentos que carregam com a sua vida profissional.

Num ambiente precarizado como o acadêmico, você tem que dar conta de 50, 60, 70 pessoas que estão ali tentando achar um caminho na vida e para os quais você não consegue se dedicar, não consegue parar para ouvir. O esquema em que você tem que ser um professor horista, que não tem condições de se dedicar individualmente a cada aluno, acaba, pela precarização imposta pelo sistema e pela relação de educação mercantilizada, despejando isso e desmotivando o estudante.

O jornalismo é uma profissão que sabemos vital, mas no modelo de negócios do jornalismo que passa por essa crise que já conhecemos, é fácil perder o sentido do ofício. Quando a gente perde a perspectiva do sentido do ofício, a gente cai de novo em mais uma armadilha desse sistema que é replicar amarguras.

Você se sente saturado passando o tempo todo na frente das telas?

Muito. Acho que é difícil encontrar alguém que não esteja. Eu ainda vou para a redação todos os dias e desempenho minhas funções localmente, interajo com pessoas, respeitando os protocolos sanitários. Isso me faz ter outro olhar, outra vivência. Estar com gente é uma coisa muito importante para o indivíduo. Mas além de ser jornalista, eu também sou professor. As aulas, nesse ambiente remoto, são de colocar a vocação à prova.

A educação demanda uma troca, você precisa sentir o cheiro do outro, ouvir a respiração do outro, ver se o olho está brilhando… É ali que vemos se a compreensão está chegando onde deve chegar. Mas é o que temos para hoje... Vejo que os estudantes também têm atendido ao desafio de se manterem ativos e participantes. Não são todos os cursos e universidades, mas na PUCSP a gente tem conseguido manter essa assiduidade. Só o tempo vai dizer o que esse momento cobrou da formação desses estudantes, apesar do esforço de lado a lado.

Quais são as fontes das quais você tem bebido para tentar entender o período em que vivemos?

Poesia. Estou ouvindo músicas que não ouvia há muito tempo. Me dei conta da importância da música latinoamericana para a minha formação política num momento muito embrionário da adolescência. Então voltei a ouvir músicas que foram muito significativas e elas estão me acompanhando de uma forma muito presente.

Tenho escutado muita gente, muitos podcasts e lives (apesar de não gostar dessa coisa americanizada no nome). Acho que temos conseguido produzir conteúdo relevante, ainda que pulverizado, banalizado… porque é tanta coisa que se oferece que coisas primorosas acabam ficando escondidas.

Além disso, eu tenho escrito poesias e tenho pintado, coisas às quais nunca havia me dedicado. Coisas manuais. Tem sido um período para descobrir formas de expressão e vazão. Mais do que expressão, para que a cabeça não exploda. E isso tem me ajudado muito. É uma forma de manter a mente longe e fora desse descalabro todo.

O Café sem Pauta é um momento de se reesperançar. Principalmente porque quem lida com jornalismo diário está submetido a um espanto permanente. A nossa profissão demanda o espanto. Se a gente não se espanta, significa que a gente naturalizou.

O tempo que vivemos é de um espantamento constante - para rimar com espancamento, porque a nossa alma está sendo espancada cotidianamente. Por isso os momentos que mais me marcam no Café sem Pauta são os em que a arte toma frente na linha do discurso. Ali falamos principalmente do que a alma humana é capaz diante de tudo isso que estamos enfrentando.

Leia a entrevista com o professor Ronald Sclavi
Café sem Pauta: encontros para falar do jornalismo

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