Utópicos e práticos
Por Gilberto Maringoni *
O mote externado por José Saramago, em sua palestra no auditório Araújo Viana – “não sou um utópico, temos de construir o novo mundo amanhã” – entra com perspicácia no principal debate realizado em torno dos destinos do Fórum Social Mundial.
A questão das utopias, no âmbito das esquerdas e na definição de rumos da transformação social, tem mais de 150 anos de história. Um marco é o clássico de Friederich Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, um pequeno, porém instigante, volume sobre o tema. Suas palavras são diretas a respeito dos utópicos de seu tempo: “Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará”.
Possibilidades concretas
Desde o final do século XIX, as vertentes marxistas esforçaram-se para tirar os objetivos da construção de uma nova sociedade – o outro mundo de seus tempos - do plano dos “acasos”, de que falava Engels, e transplantá-los para o terreno das possibilidades concretas. Ou seja, localizar o desejo de transformação social na seara da luta política.
Há ainda outra razão lógica para se esvaziar o utopismo dos objetivos coletivos: alguém já disse, com propriedade, que não se luta por metas que não se enquadrem no horizonte do tempo de vida do lutador.
Utopias deslocadas dos caminhos que deveriam levar a ela inscrevem-se no rol dos valores íntimos e ideais elevados de cada um, incapazes de se transformar em ação. Já que o objetivo é perfeito, mas inatingível, toquemos nossa vidinha por aqui mesmo, enquanto o novo dia não chega, seria a tradução rasteira desse tipo de formulação.
Na verdade, o que se coloca é se o FSM serve para dar vazão a uma multiplicidade de idéias e iniciativas fragmentadas, ou se apontará para alternativas concretas.
Alternativas desse tipo pressupõem estudo de caminhos, vias, formulações táticas e estratégicas e a delimitação de objetivos parciais em cada trecho da escalada. Em uma palavra, pressupõem a elaboração de programas. Ninguém propõe transformar o Fórum numa gigantesca assembléia, com deliberações de voto de maioria. Isso é quase impossível, dada à diversidade dos participantes. Mas a manifestação da política enquanto expressão da disputa pelo poder na sociedade avança em Porto Alegre.
Disjuntiva
Mais do que nunca, nesta edição do FSM a disjuntiva entre utopistas e não-utopistas se coloca. Não será uma tarefa tranqüila para que uma das vias se afirme plenamente.
Os defensores da cada uma das vertentes perfilam-se na própria concepção organizacional do encontro. De um lado estão aqueles que brandem a carta de princípios original do FSM: “O Fórum Social Mundial reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil de todos os países do mundo. (...) Não deverão participar do Fórum representações partidárias”. O banimento vem de uma imprecisa caracterização do encontro como sendo uma iniciativa da “sociedade civil”, por mais nebuloso que o termo possa ser.
Assim, nem Estado e nem partidos – ambientes privilegiados da disputa política – teriam espaço privilegiado. Apesar das intensas discussões sobre não se partidarizar o FSM, o receio maior era o de não politizá-lo, isto é, de não dar conseqüência mais profunda ao que é aqui debatido.